terça-feira, 24 de maio de 2011

A frágil arte do filme

Esta tradução do inglês do clássico texto de Raymond Borde, publicado na revista Correio da Unesco, de agosto de 1984, foi gentilmente enviada para o blog pela colega Silvia Franchini. Agradecemos essa importante colaboração, uma vez que "A frágil arte do filme" é um texto sintético e que resume várias questões importantes, traçando uma história resumida da preservação cinematográfica no mundo e da trajetória dos arquivos e cinematecas ao longo do século XX. Por ser um texto escrito há quase trinta anos, algumas considerações podem ser feitas em sobre seu conteúdo. Em relação ao cinema silencioso, já se aventa que muito da perda dos filmes não se deveu a destruições deliberadas, mas ao número relativamente pequeno de cópias que eram feitas e que, sendo compradas e não alugadas como depois se consolidou, eram projetadas pelos seus proprietários até se esgarçarem completamente. Por outro lado, os filmes que fazia mais sucesso demandavam a feitura de dezenas de cópias que, por sua vez, antes da existência de materiais intermediários, literalmente "acabava" com os negativos.
Artigos recentes também têm "redimido" o nitrato, geralmente visto como o grande vilão da preservação do cinema, mas que, diante da instabilidade do acetato (sobretudo no que se refere aos corantes), tem surpreendido muitos arquivistas por sua estabilidade. O mais significativo texto talvez seja "Mea culpa; or, How I Abused the Nitrate in My Life", de Sam Kula.
De qualquer modo, o texto de Borde permanece como uma referência importante e um grande acréscimo para o blog. Boa leitura.


A frágil arte do filme

por Raymond Borde*

tradução de Silvia Franchini*

O cinema é uma arte frágil. Antes do estabelecimento das primeiras cinematecas, ele sofreu graves perdas e permanece vulnerável à uma imprudente destruição de negativos e cópias.

A dimensão dessas perdas é horrível. Há razões para acreditar que mais da metade de todos os filmes realizados pelo mundo no período entre a invenção do cinema em 1895 e 1950 desapareceu. Há variações de um país para outro; mas tendo em conta a história do cinema como um todo, as variações nos métodos de produção, a evolução do mercado e o avanço técnico na conservação do filme, esta é uma razoável estimativa da proporção de perdas entre o período em que a destruição era comum e a época atual em que a conservação é uma preocupação prioritária. Ela fornece esmagadora justificativa para a convocação de uma política mundial para a salvaguarda de "imagens em movimento".

A razão fundamental para estas perdas pode ser encontrada na própria natureza dos filmes, que são simultaneamente uma forma de mercadoria e objetos de valor cultural. Durante meio século, os critérios comerciais predominaram. Produtores simplesmente destruiram filmes antigos que estavam desatualizados, perderam sua popularidade ou, por razões técnicas, não eram mais comercializáveis. A idéia que imagens em movimento fazem parte do patrimônio cultural foi desenvolvida lentamente, graças aos esforços de historiadores e daqueles que abriram os caminhos para as primeiras cinematecas.

A primeira onda de destruição em massa ocorreu por volta de 1920. A principal vítima foi o assim chamado cinema "primitivo" – o cinema de feira e de casas de entretenimento popular. Pantomimas, espetáculos, um ou dois rolos de melodramas e perseguições cômicas cheias de efeitos especiais que encantaram o público foram os primeiros a ser descartados, mas os primeiros "filmes de arte" do período que precede imediatamente a Primeira Guerra Mundial, que procurou dar ao cinema um status comparável ao do teatro, também sofreu o mesmo destino.

Os gostos mudaram. Depois de 1918 filmes tornaram-se mais ambiciosos, mais realistas, e duravam em média uma hora e meia. Atores de qualidade substituiram os lúdicos artistas dos anos pré-guerra e direção de filmes tornou-se uma arte em si. Houve uma completa ruptura com o passado, com o cinema "antigo" como era chamado desdenhosamente. Distribuidores correram para se livrar de seus estoques de filmes sem valor comercial, vendendo os a comerciantes que lavavam os para recuperar os sais de prata contidos na emulsão.

A mesma coisa acontecia em todo lugar. O American Film Institute estimou que oitenta e cinco porcento dos filmes realizados nos Estados Unidos entre 1895 e 1918 desapareceram dessa maneira. Os números são semelhantes na França, Itália e nos países escandinavos. As obras de Georges Meliès e Ferdinand Zecca foram muito atingidas, mas os primeiros filmes de Abel Gance, Mauritz Stiller e Victor Sjoestrom não foram poupados também. Esta faxina geral foi como uma vingança.

A segunda onda de destruição, quase tão indiscriminada como a primeira, ocorreu por volta de 1930 com a transição do mudo para imagens sonoras. O cinema passou por uma mudança radical. No que diz respeito a película propriamente dita, a bitola padrão permaneceu 35mm, mas a imagem foi reduzida no tamanho para dar lugar a trilha sonora. Projetores foram substituídos ou modificados. Fala, música e opereta invadiram a tela. Uma nova geração de atores provenientes do teatro substituíram as estrelas de cinema que poderiam fazer mímica, mas não falavam suas partes.

Em dois anos, a indústria do cinema em todo o mundo descobriu-se com enormes estoques de filmes rejeitados em suas mãos que foram empacotados e entregues para vendedores de sucata. Estatísticas globais a respeito das perdas de filmes da década de 1920, a idade de ouro do cinema silencioso, não existem, ou restam por ser compiladas, mas estimativas aproximadas colocam essas perdas em oitenta porcento para a Itália, setenta e cinco porcento para os Estados Unidos e setenta porcento para a França. Em países onde cinematecas nacionais foram criadas a tempo de preservar pelo menos um negativo ou cópia os números são relativamente menores (quarenta porcento na Alemanha e dez porcento na URSS).

Sejam qual for os números exatos, essas perdas catastróficas tiveram o efeito de alertar a opinião pública e lançar a idéia das cinematecas. Jornalistas e escritores assumiram a causa e, embora reconhecessem que havia restrições econômicas, argumentaram a favor da conservação dos produtos da indústria como parte do patrimônio cultural.

A terceira onda de destruição ocorreu muito mais recentemente, no ínicio da década de 1950. Até então, a tira fina de plástico utilizada como suporte para a emulsão sensível à luz onde as imagens em movimento são registradas era feita de nitrato de celulose (celulóide) uma substância altamente inflamável e perigosa. Quando diversos governos proibiram o uso de nitrato de celulose, todos os fabricantes mudaram o suporte para o acetato de celulose não inflamável conhecido como "filme de segurança".

Naquele momento, no início da decada de 1950, ainda não se tinha percebido que os filmes antigos de qualquer espécie podiam um dia adquirir valor renovado como material para programas de televisão ou como foco de mostras retrospectivas em salas de cinema avant-garde ou experimentais. Obras-primas foram preservadas, mas os filmes sem nenhuma qualidade especial que parecia ter tido os seus dias foram descartados. Em alguns países o deposito de filmes de nitrato em arquivos nacionais foi incentivado, mas a taxa de destruição permaneceu elevada. Aqui novamente, as estatísticas globais a respeito do total da produção cinematográfica entre 1930 e 1950 (o período entre a chegada das imagens faladas e a substituição do nitrato pela película de acetato) são falhas, mas estima-se que alguma coisa entorno de trinta porcento de todos os filmes desse período foram perdidos.

Por enquanto nós falamos de perdas que podem ser atribuídas à negligência humana ou à considerações comerciais de rentabilidade. Mas também as leis da química têm sido responsáveis pelo desaparecimento de muitos filmes. Filme de nitrato é instável e gradualmente decompõe-se. Filmes coloridos desbotam e perdem sua harmonia e equilíbrio cromático causados pelas reações químicas entre as três substâncias básicas de coloração. Vítima da negligência humana, o cinema também está sob uma espécie de maldição técnica que o torna uma das mais ameaçadas das artes. Conseqüentemente, o papel do químico tornar-se determinante na salvaguarda desse elemento do patrimônio cultural.

Esta operação de resgate constitui a substância da longa história das cinematecas e arquivos de filmes. Já em 1898, um cinegrafista polonês, Boleslaw Matuszewski, publicou em Paris, um panfleto intitulado Une Nouvelle Source d'Histoire (Uma Nova Fonte de História), onde ele propôs a criação de um museu do cinema para que as imagens em movimento com interesse histórico, educacional, industrial, clínico e artístico pudessem ser preservadas. O objetivo de Matuszewski era de transmitir às futuras gerações a autêntica imagem de sua própria época, a idéia era fixar num arquivo oficial o depósito legal das obras cinematográficas que também estaria autorizado a aceitar filmes na forma de doações, legados ou na base de troca. A prioridade seria dada à conservação de negativos e o arquivo seria aberto ao público.

O projeto era a frente de seu tempo e não se concretizou. Trinta e cinco anos se passaram antes da profética mensagem de Matuszewski fosse resgatada do esquecimento.

É verdade, porém, que até o final da era do cinema silencioso coleções foram construídas em vários países, mas sua finalidade era utilitária. O objetivo não era preservar as obras cinematográficas como tal, mas sim montar várias categorias de filmes para uma finalidade específica. Ela poderia ser militar (como no caso das coleções do British War Museum, em Londres, B.U.F.A. em Berlim e o Section Cinématographique do exército francês, em Paris); religiosa (a coleção do abade Joye, em Basileia); legal (a coleção da Library of Congress nos Estados Unidos, preservada para fins de direitos autorais, e a Gaumont, Pathé, Metro-Goldwyn-Mayer e outros arquivos de estúdio); educacional (o arquivo soviético de cinema documentário, criado em 1926); ou mesmo filosófica (a coleção de Albert Kahn, em Paris).

Ninguém até 1933 foi oficializado como o primeiro arquivo de filmes no sentido moderno do termo – uma instituição que tem como função principal a salvaguarda das imagens em movimento como parte do patrimônio cultural. Como foi a Sveska Filmsamfundet, criada em Estocolmo por um grupo de cinéfilos que ficaram chocados com a destruição maciça dos filmes mudos. Esta modesta iniciativa provou ser um marco na história dos arquivos fílmicos. Em outros países coleções de filmes logo foram organizadas:

  • em 1934, em Berlim (o Reichsfilmarchiv), e em Moscou (a cinemateca da escola de cinema V. G. I. K.);
  • em 1935, em Londres (o National Film Library), Nova Iorque (a cinemateca do Museu de Arte Moderna) e Milão (a coleção Mario Ferrari, que mais tarde tornou-se a cinemateca italiana);
  • em 1936, em Paris (a Cinemateca Francesa);
  • em 1938, em Bruxelas (a Cinemateca Belga).

O mesmo ano, 1938, viu a criação da Federação Internacional de Arquivos Fílmicos (FIAF), que no início só tinha membros em Berlim, Londres, Nova Iorque e Paris, mas deu uma forma internacional para a nova consciência e o ideal comum. Também o público começava a descobrir, graças às mostras retrospectivas dos primeiros filmes, que o cinema já tinha uma história cultural e que ela pertencia ao patrimônio artístico da humanidade.

Após a Segunda Guerra Mundial, este movimento ganhou força e a onde quer que exista uma tradição cinematográfica nacional cinematecas nacionais foram criadas. Hoje, FIAF compreende setenta e duas instituições em cinquenta países, e a tendência parece irreversível. A Recomendação para a Salvaguarda e Preservação das Imagens em Movimento, adotada pela Conferência Geral da UNESCO em 1980, também está dando frutos. Os países em desenvolvimento estão mostrando um firme e crescente interesse na preservação e utilização para fins culturais dos filmes e outros materiais audiovisuais do passado.

Ao mesmo tempo, o próprio conceito de filme de arquivo evoluiu. Os pioneiros de 1930 eram pessoas determinadas e seus gostos e preferências coloriram seus julgamentos na seleção de títulos para preservação. Eles se comportavam mais como colecionadores do que arquivistas e alguns deles ignoraram que havia o aspecto técnico no processo de armazenagem de filmes. Contudo, o crédito é deles pelo papel histórico que desempenharam na criação do primeiro arquivo fílmico e na salvaguarda de milhares de filmes para posteridade que de outra forma teriam desaparecido. Com a ampliação dos arquivos cinematográficos veio também o desenvolvimento e a imposição de normas internacionais para preservação e catalogação.

Atualmente, cientistas e juristas desempenham um papel mais importante do que os cinéfilos. Sua tarefa é tornar o conceito de armazenamento mais crível a compreensão dos cineastas de hoje. Após alguns contratempos, bem como sucessos, a grande aventura lançada profeticamente por um cameraman polonês em 1898 está perto de se concretizar, e esta é certamente a melhor garantia de que o cinema nunca mais vai sofrer os atos destruitivos que marcaram sua história no passado.



* Crítico e historiador do cinema francês, é o fundador-curador da Cinemateca de Toulouse e vice-presidente da Federação Internacional de Arquivos Fílmicos (FIAF). Sua pesquisa “Les Cinémathèques” foi publicada em 1983 pela editora L'Age d'Homme, Lausanne.

* Mestranda em Memória Social (PPGMS - UNIRIO).

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Novo blog sobre som no cinema

Recebi o link de um excelente blog de pesquisa e discussão intitulado "Artesãos do Som" (http://www.artesaosdosom.org/), criado pelo pesquisador Bernardo Marquez.
Discussões interessantes e uma excelente sessão de "pesquisa", com links de artigos, teses, dissertações e livros sobre o tema.
Uma boa novidade que merece ser conferida.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Vídeo de debate na Semana ABC

(E-mail enviado por Silvia Franchini)

A Associação Brasileira de Cinematografia realiza de 04 à 06 de maio, em parceria com a PUC-Rio, a 9ª Semana ABC. Desde 2003, a Semana ABC reúne personalidades das diversas áreas da cinematografia, do Brasil e do exterior, em conferências, painéis e debates.

Mesa da Cinemateca Brasileira - "Banco de Conteúdo Culturais?", realizada na tarde do dia 05 de maio, no auditório do RDC da PUC-Rio. Participação: Osvaldo Emery e Rodrigo Mercês. Vídeo da palestra: http://puc-riodigital.com.puc-rio.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=9282&sid=145&tpl=view_integra.htm.

O Banco de Conteúdos Culturais, realizado pela Cinemateca Brasileira, é fruto de uma cooperação entre o Ministério da Cultura e o Ministério da Ciência e Tecnologia que possibilita o uso da infra-estrutura da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa para a distribuição de obras audiovisuais.

A utilização dessa rede de conexão em alta velocidade representa a possibilidade de difusão dessas obras não apenas para a comunidade acadêmica e científica, mas também para o público em geral, ampliando o acesso público aos conteúdos audiovisuais que são sistematicamente preservados, catalogados e armazenados em condições técnicas adequadas.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Oficinas do 6. CineOP

Estão abertas as inscrições para as oficinas da 6. mostra de cinema de Ouro Preto, que será realizada de 15 a 20 de junho de 2011.
As oficinas são gratuitas e as inscrições podem ser feitas pelo site www.cineop.com.br até o dia 20 de maio.
A lista das oficinas está abaixo. Eu darei uma del
as, sobre a história das tecnologias das imagens em movimento, e Débora Butruce, do CTAv, ministrará uma sobre preservação e restauração. Ótimas pedidas.


domingo, 8 de maio de 2011

A cor, a vida e a arte em Os Sapatinhos Vermelhos

Um trabalho que escrevi durante o doutorado para uma disciplina sobre o gênero musical ministrada pelos profs. João Luiz Vieira e Fernando Morais.

A cor, a vida e a arte em Os Sapatinhos Vermelhos

Introdução

Dadas as circunstâncias particulares em que esse texto foi escrito, espero que permitam certa dose de informalidade em seu estilo, freqüentemente assumindo a narração em primeira pessoa, o que espero não prejudicar seu resultado final.

Estando há alguns dias em Los Angeles, a milhares de quilômetros de Niterói, as aulas do curso sobre o gênero musical na sala de projeção do IACS, apesar de extremamente interessantes e proveitosas, pareciam uma realidade distante e a definição do tema para o trabalho final, uma tarefa difícil. A idéia para este texto surgiu apenas no dia 1º de agosto, quando fui pela primeira vez ao Billy Wilder Theater, a sala de cinema do UCLA Film and Televison Archive, assistir à estréia nos Estados Unidos da cópia restaurada pela própria UCLA do filme britânico The Red Shoes, dirigido por Michael Powell e Emeric Pressburger, e lançado em 1948.

“The Red Shoes restored”, como o programa era chamado nos jornais locais, fora exibido com sucesso no Festival de Cannes e essa estréia americana seria precedida por uma introdução do restaurador do filme, Robert Gitt. (1) Sabendo disso, decidi chegar com antecedência ao cinema, localizado dentro do prédio do Hammer Museum, a poucos quarteirões do campus da universidade e relativamente próximo a minha casa.

Chegando lá cerca de cinqüenta minutos antes do início do filme, encontrei uma fila relativamente longa, que logo descobri ser para comprar ingressos para a sessão, marcada para as 19h30. As vendas ainda não tinham sido sequer iniciadas, pois os atendentes deviam antes esperar a retirada dos ingressos vendidos pela internet, além daqueles destinados aos Cineclub members. A tensão na fila foi crescendo conforme o tempo ia passando e as vendas não eram liberadas, sob a alegação de que deveria se verificar primeiro quantos ingressos iriam sobrar. Um funcionário do cinema, de tempos em tempos, contava o número de pessoas na fila e estimava quem ainda seria felicitado com a entrada. Alguns desistiam, comprando ingressos para as três outras apresentações de The Red Shoes nos dias seguintes. Eu esperava tranqüilo, pois na segunda recontagem minha entrada já tinha sido aparentemente “garantida”, embora a fila tivesse dobrado de tamanho desde a hora em que cheguei.

Entretanto, por volta das 19h20, com ingressos sendo vendidos a cota-gota, comecei a ficar apreensivo. Um acontecimento pitoresco se deu quando um homem bem vestido anunciou para a fila que tinha um ingresso sobrando e que venderia por vinte dólares. O funcionário do cinema o reprimiu asperamente falando que cambistas não eram permitidos, mas um companheiro de fila, compreensivelmente revoltado uma vez que o ingresso custava nove dólares, reagiu de forma mais impulsiva, com xingamentos e fazendo sinal de “banana” com os braços. Poucos minutos mais tarde, quando minha vez no guichê já estava próxima, outro senhor – esse mais simpático – que parecia esperar até o último minuto sua companhia que não chegava, me perguntou se eu estava sozinho e me deu o ingresso extra que tinha às mãos para pode entrar correndo para a sala, pois já passava da hora.

No final de contas, entrei de graça e consegui um lugar na segunda fila do cinema de aproximadamente trezentos lugares que se encontrava completamente lotado. Logo as luzes se apagaram e um apresentador chamou ao palco Robert Gitt, que começou sua fala enquanto imagens na tela ilustravam suas palavras. O restaurador falou um pouco do próprio processo de filmagem em Technicolor, com sua câmera que, através de um prisma, dividia a luz da objetiva para três negativos preto-e-branco que corriam sincronicamente e eram individualmente sensibilizados para as três cores primárias: verde, azul e vermelho.

Os negativos originais do filme encontravam-se preservados no National Film and Television Archive (NFTA), arquivo nacional vinculado ao British Film Institute, mas a emulsão tinha sofrido danos causados por fungos, que se alimentam da gelatina que mantém em suspensão os grãos de prata da imagem. Entretanto, esses problemas não apresentaram grandes dificuldades para a restauração digital em 4K, uma vez que o escaneamento com wetgate (janela molhada) já eliminaria boa parte desses problemas. O maior desafio se deveu ao fato de que algumas cenas apresentavam problemas na sobreposição das cores, com os tons azuis flutuando pouco acima do contorno das pessoas e objetos e os tons vermelhos pouco abaixo. Conforme Gitt, para acelerar a dispendiosa produção de The Red Shoes, foram utilizadas pelo diretor de fotografia Jack Cardiff duas câmeras Technicolor e aparentemente uma delas apresentou problema na sincronização – que deveria ser absolutamente perfeita – entre os três negativos, resultando no desalinhamento das cores no momento de sobreposição das matrizes na cópia final colorida. Esses problemas foram em grande parte amenizados, embora mesmo na versão restaurada, caso se olhe com muita atenção (e com certa dose de má vontade), ainda seja possível identificar quais foram as poucas cenas feitas com a câmera defeituosa.

Como sempre ocorre nas apresentações de filmes restaurados, imagens de “antes” e “depois” foram exibidas, provocando justificados murmúrios de admiração na platéia. Robert Gitt encerrou então sua simpática e instrutiva apresentação, sendo seguido por um vídeo em que o cineasta Martin Scorcese – diretor da The Film Foundation, promotora da restauração patrocinada pela Hollywood Foreign Press Association e pela Louis B. Mayer Foundation – também introduzia a sessão. Além de nomear e agradecer os responsáveis pela feitura do filme e por sua restauração, Scorcese recordava de quando assistiu à obra de Powell e Pressburger pela primeira vez, destacando como talvez o “mais belo filme em Technicolor jamais realizado”.(2)

Essa introdução ao trabalho – relatando minha própria introdução à visão do filme numa cópia 35 mm irrepreensível (que eu tinha visto pela primeira vez há cerca de um ano atrás, numa bem cuidada edição em DVD do selo Criterion) – tem como objetivo justificar a escolha deste filme para o trabalho final, apesar de ser questionável defini-lo como um musical. Afinal, The Red Shoes não tem canções e seus números de dança (mais do que números musicais) são sempre diegeticamente justificados como apresentações da companhia de balé. Entretanto, como estou neste exato momento escrevendo uma tese de doutorado que questiona definições rígidas e essencialistas sobre os gêneros cinematográficos, acho bastante compreensível minha escolha recair sobre um título que talvez desafie esse tipo de definição rígida e determinista. Independente de ser um musical, um drama ou um “backstage drama about music and dance”, trata-se de uma obra que levanta questões relevantes a temas abordados pelo curso sobre os limites entre vida, arte e entretenimento. Por esse motivo também, será feita uma breve referência comparativa ao filme A Roda da Fortuna (The Band Wagon, Vicente Minnelli, 1953) na conclusão do texto.

Por fim, The Red Shoes se presta perfeitamente ainda a uma análise que leve em consideração a questão da cor no cinema, sobretudo quando obtida através do histórico processo Technicolor número 4, utilizado em tantos outros musicais dos anos 1940 e 1950, muitos dos quais vistos e discutidos em classe, como os clássicos da MGM Um dia em Nova Iorque (On the town, Gene Kelly e Stanley Donen, 1949), A roda da fortuna ou Sete noivas para sete irmãos (Seven brides for seven brothers, Stanley Donen, 1954), entre outros.

A cor no cinema em geral e no musical em particular

Assim como se tornou quase um clichê dizer que o cinema silencioso nunca foi silencioso (apesar de algumas vozes discordarem radicalmente dessa afirmação, como a de Rick Altman), novos estudos, pesquisas e descobertas nos arquivos de filmes estão colaborando para consolidar a noção de que o cinema silencioso nunca foi também somente preto-e-branco.

Desde os primórdios do cinematógrafo – que pode ser visto como mais um elo da longa história das tecnologias e dos formatos de representação visual – já existia diferentes procedimentos para dotar de cor as imagens fotográficas em movimento, como a pintura manual direta e praticamente artesanal dos fotogramas ou o mais mecanizado sistema de pintura por estêncil, colocado em prática em grande escala no começo do século XX pela então poderosa Pathé, através do pathécolor.

Sucedendo e existindo concomitantemente à fotografia (que também utilizava a pintura manual e por estêncil), aos espetáculos de lanternas mágicas (com o brilho de suas cores projetadas nas imagens em placas de vidro) e aos panoramas (que buscavam através do realismo de suas pinturas “transportar” os espectadores para outras espaços e épocas), o cinema não podia se contentar com imagens monocromáticas da realidade colorida, meras “sombras da vida”, como escreveu Máximo Górki, em 1895.

De fato, muitos filmes desde o início do cinema – inclusive na histórica primeira sessão dos irmãos Lumière em Paris, em 1895 – foram apresentados em versões coloridas, em cópias tintadas (em que o suporte da película recebia uma cor, que substituta o branco), viradas (em que outro sal metálico ou colorante substituía a prata e, conseqüentemente, o preto) ou com ambos os processos conjugados.

Além do processo de tintagem ou viragem, o período entre 1911 e 1928 presenciou a agressiva concorrência entre diferentes métodos que buscaram captar fotograficamente a realidade em cores (cf. USAI, 2000). Entretanto, as dificuldades técnicas eram imensas e a irregularidade de todos os processos resultava em cópias ou projeções distintas umas das outras, além de altamente dispendiosas.

Lançado em 1928, o Technicolor Process n. 3 representou uma revolução na tecnologia do cinema, embora utilizasse, como diversos outros métodos, a simplificação para apenas duas cores primárias. Dessa forma, o verdadeiro marco se deu com o Technicolor Process n. 4, lançado em 1930, quase concomitantemente ao advento do som no cinema e, conseqüentemente, com o surgimento do gênero musical.

No artigo Sound and Color, Edward Buscombe (1978) apontava que antes da introdução do Technicolor n.4 (mas também durante o apogeu desse sistema), as cores eram utilizadas, sobretudo, em gêneros como a animação, musical, western, filme de época ou comédia fantástica – todos mais associados a representações menos preocupadas com a “vida como ela é” –, em detrimento dos gêneros majoritariamente preto-e-branco como os cinejornais, documentários, filmes criminais, filmes de guerra etc. A partir da leitura de um manual técnico – Elements of Color in Professional Motion Pictures (1957) –, Buscombe procurou demonstrar que as cores eram utilizadas para mostrar não a realidade em si, mas como o público deveria entendê-la, estando seu uso sempre submetido aos ditames da narrativa ou do estrelismo, mesmo que em confronto direto com o que seria o “real”. Nos gênero fantástico e no musical, os elos com a realidade poderiam se esgarçar ainda mais, pois, conforme o manual:

Filmes musicais e fantásticos são mais abertos às oportunidades ilimitadas para o uso criativo da cor. Aqui nós não somos amarrados pela realidade, passada ou presente, e nossas imaginações podem voar. Os filmes musicais e fantásticos são geralmente concebidos para prover aos olhos o mesmo prazer que a música proporciona aos ouvidos.

Desse modo, até o filme colorido se tornar padrão da indústria (o que só aconteceria no final da década de 1960), segundo Buscombe a cor não precisava servir ao realismo, ela devia simplesmente prover prazer – e esse prazer seria geralmente uma celebração do luxo ou do espetáculo, ou ainda da própria tecnologia do cinema, como também aconteceria no caso do Cinerama, do CinemaScope e do 3-D etc., todos obviamente coloridos.

Num artigo mais recente e fruto de pesquisas históricas mais rigorosas, o especialista em “primeiro cinema” Tom Gunning (1994) apontou de forma mais enfática o papel contraditório da cor no cinema, que, além de satisfazer o desejo por realismo (a cor como índex do real), pode também surgir com “pouca referência à realidade, como uma presença puramente sensual, um elemento que pode até mesmo indicar a divergência da realidade”. Além disso, no período de “invenção da vida moderna”, tanto no cinema como em outras mídias e meios (publicidade, literatura, design gráfico etc.), “as cores carregariam conotações de novidade e apareceriam como seleções especiais contra o panorama de imagens monocromáticas”. No cinema silencioso em particular, a adição da cor aos filmes “não se ressentia da ausência de naturalismo. Pelo contrário, o uso arbitrário e não-natural das cores, mais intenso que a realidade, permitia às cores serem experimentadas como uma poder nelas mesmas, ao invés de apenas uma qualidade secundária dos objetos”.

Mesmo no cinema sonoro, nos filmes musicais, em especial, o “poder metafórico das cores” continuou presente, tendo como exemplo clássico o filme O Mágico de Oz (The Wizard of Oz, Victor Fleming, 1939) com sua diferenciação entre o preto-e-branco realista, sóbrio, dramático (a paisagem árida do Kansas) e o colorido mágico, irreal e musical (a terra fantástica de Oz). De certa maneira, isso se repetiu na refilmagem pop-black O mágico inesquecível (The Wiz, Sidney Lumet, 1978), com a diferenciação entre um subúrbio pastel e um universo urbano-fantástico de grafite e neon.

As cores extremamente intensas e saturadas do processo Technicolor n.4 eram obviamente um elemento que reforçava esse apelo às cores como atrações em si próprias, sobretudo antes da introdução dos grandes formatos panorâmicos. A partir da análise do filme The Red Shoes, exemplo de um exuberante filme em Technicolor ainda em formato acadêmico (1:1,37), destacarei a cor – juntamente com o cenário e figurino – como uma potencia que amplia as principais questões temáticas discutidas pela obra.

A cor dos sapatinhos vermelhos

Reunidos sob a designação de Os Arqueiros (The Archers), Michael Powell e Emeric Pressburger trabalharam juntos em diversos filmes que são considerados verdadeiros clássicos do cinema britânico. Grande parte do prestígio que as obras dessa dupla desfrutam atualmente se deveu ao trabalho do então National Film Archive (NFA), que preservou, restaurou e colocou em circulação cópias de seus principais filmes, auxiliando sua descoberta pelos críticos e público contemporâneo.

Os sapatinhos vermelhos (The Red Shoes) é talvez o mais aclamado trabalho de Powell e Pressburger, não tendo obtido na época grande repercussão no Reino Unido, mas tendo vindo a ser tornar um dos filmes britânicos de maior sucesso em todos os tempos nos Estados Unidos.

Tematizando a criação artística, o filme apropriadamente começa no cenário de um teatro, onde estudantes correm para pegar um lugar na platéia para assistir a um balé. Desde o início já se nota a perfeita triangulação entre os três protagonistas do filme: no lugar mais barato, alto e central, o promissor estudante de música Julian Craster (Marius Goring) vai assistir ao espetáculo de dança interessado apenas na trilha musical composta por seu professor; numa lateral, a jovem bailarina Victoria Page (Moira Shearer), assiste ao balé do camarote acompanhada de sua aristocrática tia; e em outra lateral, Boris Lermontov (Anton Walbrook), o temperamental diretor da companhia, está presente à estréia de sua nova produção. A maior parte das ações ocorre na própria platéia (Julian percebe que foi plagiado pelo professor e Lady Nelson, tia de Vicky, convida Lermontov para uma recepção em sua casa), tendo pouca importância e merecendo poucos planos o que ocorre no palco. Ou seja, trata-se de uma trama de bastidores que começa na platéia e posteriormente migrará, junto com seus personagens, para os bastidores propriamente dito.

Em diferentes circunstâncias, Julian e Vicky acabam sendo convidados por Lermontov para entrarem para a companhia. Fica claro o comprometimento que o diretor exige de seus artistas com o ofício de criar Arte. Ao ser questionado o motivo pelo qual ela dança, a candidata à bailarina deixa o diretor sem palavras (e admirado) ao replicar: “Por que você vive?”. Dançar é muito mais que apenas um desejo – como viver, deve ser uma necessidade ou um impulso inexplicável. Ao mesmo tempo, o talento para a arte é um dom, um privilégio de poucos e invejado por muitos, como se deduz da primorosa fala de Lermontov quando sugere a Julian não levar adiante a descoberta do plágio pelo seu professor: “Ter que roubar é muito pior do que ser roubado”.

O próximo projeto da companhia Lermontov é um balé baseado na fábula de Hans Christian Andersen, Os sapatinhos vermelhos. Ao contar a trama, percebe-se o fascínio e entusiasmo do diretor pela história da moça que recebe um par de sapatos mágicos que a faz dançar maravilhosamente, mas também ininterruptamente. Do mesmo modo, nota-se seu divertido descaso e desinteresse pelo final do conto de fadas, que termina com a morte da bailarina, completamente esgotada. O projeto do ambicioso Lermontov é de uma obra de arte total, a junção de música, teatro, dança, pintura e literatura, sendo a companhia uma reunião de diferentes talentos a serviço de uma só criação, guiada por ele.

O filme evolui de forma leve e com toques de humor ao mostrar a dura rotina de ensaios da companhia em suas viagens e apresentações por toda a Europa, assim como as diversas tramas de bastidores. Novamente, poucos planos dos próprios espetáculos são mostrados, enquanto os artistas, quando retratado fora dos palcos, agem de forma espetacular e exageradamente teatral, seja a exagerada e emotiva primeira bailarina Irina (Ludmilla Tchérina) que larga a companhia para se casar, o exigente e histérico coreógrafo Grischa (Léonide Massine) ou o rígido e “britanicamente” controlador Lermontov.

Quando a companhia viaja para a paradisíaca Monte Carlo para ensaiar o novo balé, ocorre uma reviravolta no filme. Ao receber um convite para um encontro com Lermontov, Vicky se veste para uma cerimônia de gala, com vestido longo e jóias luxuosas (que incluem até uma pequena coroa). Entretanto, o que ela imaginava ser um jantar, era somente uma reunião de trabalho na qual ela era escolhida para substituir Irina como primeira bailarina e Julian para compor a música original para o balé. Nesse momento, quando os dois jovens talentosos e esforçados finalmente ganham a chance de brilhar no palco, o filme começa a elaborar textualmente o embricamento das fronteiras entre arte e vida, palco e bastidores, realidade e fantasia. A imagem de Vicky literalmente vestida como uma princesa subindo as escadas de um castelo em ruínas, que poderia ter sido retirada de um conto de fadas, antecipa a cena bastante banal em que ela é anunciada como a protagonista do balé baseado no conto de Christian. Ou seja, estranhamente vestida como uma princesa numa cena real, mas “fantástica”, ela descobria que viria a ser a heroína da fábula encenada nos palcos.

Na cena seguinte, Vicky e Julian, músico e bailarina, se encontram na sacada do hotel e conversam sobre os acontecimentos daquele dia. O cenário é explicitamente falso, com o mar e o céu reproduzidos no cenário pintado. Se o azul das águas do mediterrâneo já parecia de uma verdade excessiva pelas cores do Technicolor, ele passava a ser literalmente pintado e francamente artificial. Essa mudança de um regime mais realista para um francamente formalista – que a princípio pode parecer brusca na trama do filme –, já vinha sendo trabalhado pela fotografia de cores extremamente vivas da paisagem de Monte Carlo. Ao mesmo tempo, significa também um momento-chave para os dois jovens, quando diante da grande oportunidade, a vida parece mais artificial – não no sentido de “falsa”, mas de menos importante – e a arte passa a representar suas verdadeiras e únicas realidades.

Durante todo o período em Monte Carlo – dos ensaios à apresentação – as paisagens reais quase desaparecem e o filme passa a operar praticamente todo em interiores. No escritório de Lermontov, cenário recorrente da trama, a janela mostra sempre uma paisagem pintada, artificial. O mundo exterior torna-se distante do universo dos membros da companhia, especialmente do diretor, restritos exclusivamente ao palco e seus bastidores.

A seqüência da estréia de Os sapatinhos vermelhos é um momento crucial para o filme. A apresentação começa com o ponto de vista da platéia, com o palco ocupando todo o espaço da tela enquanto as cortinas se abrem. Curiosamente, a partir daí, o palco perde todo tipo de barreiras e fronteiras e suas três paredes desaparecem por completo. A história de Anderson é apresentada numa longa seqüência que usa praticamente todos os tipos de recursos disponíveis para um filme de 1948. A obra de arte total de Lermontov passa a abranger, com Powell e Pressburger, também o próprio cinema. Reproduzindo irrealisticamente o que poderia ser o balé The Red Shoes, o filme faz uso de cortes diversos na edição, de backscreen projection, de sobreposições de imagens, de ilusões de ótica baseadas em palcos infinitos ou de repetidos truques de aparição/desaparição Meilèsianos. Ou seja, o balé é a vida dos protagonistas do filme e não há limites para sua forma de representação, apelando a todos os recursos cinematográficos disponíveis que possam auxiliar a realização dessa obra. O balé dentro do filme é um louvor à possibilidade do cinema ser conjugado às outras artes na reprodução da beleza artística. Talvez por essa noção de não apenas reproduzir, mas recriar o balé no cinema, é que o filme é considerado um dos mais belos filmes sobre dança já feitos. (3)

A cor, obviamente, é um elemento de grande força no balé do filme, a começar pelos sapatos extraordinariamente vermelhos, numa referência à cor como símbolo da tentação, do desejo e do perigo, sobretudo diante do verdadeiro Fausto que é a figura do sapateiro que cria e oferece o maligno par de sapatinhos. A exuberância e, ao mesmo tempo, a ausência de naturalismo no uso das cores ao longo das seqüências de dança (a maquiagem vermelha em torno dos olhos de Vicky, além de seu cabelo ruivo dotam sua imagem de um tom quente constante) parecem uma referência clara ao uso sensual das cores típico do cinema silencioso. Não há um mundo real e um artificial – apenas o mundo do espetáculo. A platéia nunca é mostrada (quando aparece, posteriormente, em planos que focam Julian conduzindo a orquestra, novamente é claramente um cenário pintado, propositadamente artificial, desimportante, imóvel e sem vida), e os pontos-de-vista durante o balé nunca são o do espectador da audiência diegética.

Como uma obra completa dentro do próprio filme, o balé se encerra com um plano frontal do palco com as cortinas se fechando. Conforme Rick Altman (1987, p. 265), para um musical típico esse seria o final clássico. Afinal, temos o casal de artistas felizes, platéia feliz e o espetáculo criado, apresentado e aplaudido.

Mas trama do filme continua após o estrondoso sucesso de The Red Shoes, da atuação de Vicky e da música de Julian, obviamente se encaminhando para a paixão entre os dois jovens. O romance provoca os ciúmes e a ira de Lermontov, para quem a arte está acima da vida, e o amor pelo balé (e conseqüentemente por ele) deve estar acima da paixão mundana. A tensão chega ao ponto do diretor demitir Julian e obrigar Vicky a escolher entre um (representando o amor pela dança) e outro (o homem que ela ama). Lermontov perde a briga quando Vicky e Julian largam a companhia para se casarem.

O tempo passa e assim como o diretor se ressente da ausência de sua grande descoberta, Vicky sente saudades do balé, enquanto Julian investe em sua nova composição. Em oportuna visita à Monte Carlos acompanhada de sua tia, a bailarina reencontra Lermontov e acaba sendo seduzida a retornar à companhia para estrelar novamente The Red Shoes. Poucos minutos antes de sua apresentação, Julian – que falta à estréia de sua composição em Londres – surge repentinamente no quarto de hotel em Monte Carlos, confrontando Vicky. Dessa vez é ele quem a obriga a escolher entre um e outro, mas Lermontov – e o balé – acabam sendo escolhidos dessa vez.

Aos prantos e destroçada emocionalmente, ela vai sendo levada para o palco, mas a visão dos sapatos vermelhos a faz sentir-se como a própria protagonista da fábula de Anderson, encaminhando-se para a dança que será sua glória, mas também seu martírio. A bailarina sente-se escrava de sua arte como a moça de seus sapatos enfeitiçados. Em desespero, Vicky corre pelo hotel e passando pela mesma (falsa) sacada de hotel onde se encontrara com Julian no início de seu romance, desaba do alto, caindo na linha do trem. A articulação entre aquele mesmo cenário claramente artificial do hotel (onde a fumaça e o apito eram símbolos, mas não índex, do trem) e o cenário real da linha de trem onde ela cai (referência provável ao pioneiro filme de Lumière), é uma pungente metáfora do rompimento com um mundo idealizado, belo e falso, para uma vida possivelmente dolorosa, mas real. Mais do que uma analogia simplista, a ligação imagética entre os sapatos vermelhos e o sangue carmim que passa a cobrir o vestido de Vicky é um belo exemplo do uso metafórico da cor no cinema, representado os limites estreitos entre a possibilidade de a arte servir como impulso, mas também como negação da vida (ou seja, a morte). O vermelho como símbolo da paixão, nascimento e morte ganha uma enorme beleza e reverberação em The Red Shoes ao questionar o equilíbrio entre o amor pela arte e o amor pela vida.

Conclusão

Apesar de se aproximarem pela mesma trama de duros ensaios e intrigas constantes nos bastidores de um espetáculo bem-sucedido, podemos dizer que o filme de Powell e Pressburger se distancia radicalmente em outros aspectos do musical A Roda da Fortuna, no qual está presente a tradicional sintonia entre o sucesso nos palcos (na arte) e nos bastidores (na vida). The Red Shoes questiona ainda, como lembra Rick Altman (1987, p. 228), “a correlação entre prazer do artista e prazer do público” tão cara a diversos musicais.

O famoso número musical Dancing in the dark é um exemplo da sugestão, sensível e elaborada, de que a compreensão na arte (na dança) entre os protagonistas resulta em igual compreensão no relacionamento pessoal (no amor), tendo como cenário um local inusitado como um parque que se transforma imediatamente num palco para os dançarinos. Nesse sentido, o sucesso do (segundo) show dentro do musical da MGM caminha junto com o enlace amoroso entre os personagens Tony Hunter (Fred Astaire) e Gabrielle Gerard (Cyd Charisse) na direção da resolução final de todos os conflitos, pessoais, financeiros e artísticos, inclusive com o diretor Jeffrey Cordova (Jack Buchanan), dotado da humildade que falta em Lermontov. Aliás, essa característica parece ausente do diretor de The Red Shoes, pois, como sugere Altman, por ser escravo dos palcos, ele precisa ser o senhor dos dançarinos.

Se o filme de Vincente Minelli proclama, como diz a música símbolo That’s Entertainment, que o “o mundo é um palco, e o palco é um mundo de entretenimento”, o apagamento das fronteiras (e das diferenças) entre palco e realidade serve a uma sugestão de possível e desejável harmonia entre a vida, a arte e entretenimento. Conforme Altman (ibid, p. 265), Os sapatinhos vermelhos apresenta o “palco como um pesadelo”, revelando um final muito distante do happy-end coletivo de A Roda da Fortuna. Desse modo, utiliza criativamente procedimentos realistas e não-realistas, muito calcados no uso da cor, para refletir sobre os limites freqüentemente mais dolorosos e inconciliáveis entre a criação artística e a vida pessoal.

Referências principais:

ALTMAN, Rick. (1987) The American Film Musical. Indianapolis: Indiana University Press.

BUSCOMBE, Edward. (1978) Sound and Color, Jump Cut, n.17, abril. Disponível em: http://www.ejumpcut.org/archive/onlinessays/JC17folder/SoundAndColor.html

GUNNING, Tom. (1994) Colorful Metaphors: the Attraction of Color in Early Silent Cinema. Fotogenia, n.1. Edição especial: il colore nel cinema. Disponível em: http://www.muspe.unibo.it/period/fotogen/num01/numero1d.htm

USAI, Paolo Cherchi. (2000) Silent Cinema: an introduction. London: BFI.


1) Sobre a exibição do filme em Cannes, conferir o blog do crítico Kléber Mendonça Filho sobre essa sessão: http://cinemascopiocannes.blogspot.com/2009/05/scorsese-apresenta-red-shoes.html

2) Aobra de Michael Powell (1905-1990) foi revisada nos anos 1970 em parte devido à admiração manifestada por cineastas como Francis Ford Copolla e o próprio Scorcese. É interessante salientar que em 1984 Powell se casou (e permaneceu casado até sua morte) com Thelma Schoonmaker, amiga, montadora e parceira de longa data de Scorcese, que co-coordenou a restauração de The Red Shoes.

3) Essa afirmação do cinema como parceiro das demais expressões artísticas mais nobres na criação do espetáculo encontra uma ligação com uma discussão sempre presente no filme sobre a hierarquização das diferentes artes, seja no começo do filme, quando os estudantes de música discutem com os estudantes de dança, cada qual interessado em um distinto aspecto do balé; seja quando Julian demonstra seu desejo em compor música para ópera, provocando o agressivo Lermontov ao dizer que muitas pessoas consideram balé uma arte de segundo escalão.