segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Relato de colóquio da Cinemateca Francesa

Nosso amigo, o pesquisador e conservador carioca José Quental, está vivendo em Paris e nos enviou o excelente e informativo relato do evento organizado na Cinemateca Francesa sobre a revolução digital e a preservação audiovisual. Rico de questionamento e informações, o texto abaixo é uma excelente reflexão sobre questões prementes, especialmente discutidas neste blog. Agradeço ao Zé pela valiosa colaboração. Boa leitura:

Nos dias 13 e 14 de outubro participei como ouvinte do colóquio internacional “Révolution numérique: et si le cinéma perdait la mémoire?” organizado pela Cinémathèque Française. A convite do Rafael, compartilho aqui alguns comentários, observações e impressões sobre o evento.

Gostaria de esclarecer que não pretendo nesse texto fazer um relato jornalístico ou extremamente detalhado do evento. Certamente muitas coisas que chamaram a atenção de outros participantes podem ter me parecido secundárias e vice-versa. Meu objetivo é dar uma dimensão do que foi o encontro e apresentar uma leitura do mesmo. Procurei ainda utilizar um pouco as ferramentas da internet levantando links que pudessem ajudar quem tiver mais interesse sobre o tema.

O colóquio aconteceu na sede da Cinemateca Francesa e foi organizado em parceria com o Centre National du Cinéma e de l’Image Animée (CNC) e com o apoio da Kodak e da Éclair. O programa em inglês pode ser baixado aqui.

Olhando o programa, a expectativa inicial era de que seria apresentada uma atualização dos debates sobre a transição digital na área cinematográfica e que teríamos acesso a informações sobre o que vem sendo feito na conservação desse cinema que já nasce digital. A organização do evento foi feita em quatro eixos temáticos de reflexão: 1. A revolução digital hoje e amanhã; 2 – Filmar em digital: escrever na areia?; 3 – Reestruturação e digitalização de coleções; 4 – Qual o futuro das cinematecas?

Na abertura do colóquio, as falas de Costa Gavras (presidente da Cinemateca Francesa), Serge Toubiana (Diretor da Cinemateca Francesa) e Éric Garandeau (Presidente do CNC) trouxeram um outro elemento, que não estava tão claro na programação – mas que se mostrou muito importante –, sobretudo para compreender a estrutura do evento e o panorama dos participantes: para além de uma questão técnica e teórica explicitada pelos eixos temáticos, a realização do colóquio tinha um viés político forte. Tinha o objetivo de coroar um posicionamento oficial do governo francês para a “era digital” na área cinematográfica. Em seu discurso, Éric Garandeau, fez um apelo aos produtores e detentores de acervos que haviam assinado um acordo de intenções durante o festival de Cannes para digitalização de 1000 longas-metragens, que colaborassem com as negociações bilaterais para que não houvesse risco de perder linhas de financiamento. (Aqui, a página com os documentos sobre o acordo). Entre outros, o acordo foi assinado pela Pathé e pela Gaumont, ambas representadas no colóquio. Para completar esse aspecto, no final do primeiro dia aconteceu a visita “inesperada” do ministro da Cultura e da Comunicação Frédéric Mitterrand, que anunciou o compromisso do governo nesse processo de digitalização. Um aspecto interessante a destacar nas falas dos “políticos” é que há sempre um cuidado em ressaltar a importância da conservação das películas, mostrando respeito e reconhecimento pelo trabalho da Cinemateca Francesa.

Entre os conferencistas, quem abriu o colóquio foi Laurent Mannoni, um dos organizadores do mesmo. Mannoni é diretor científico e de patrimônio da Cinemateca, responsável pelo Conservatoire des Techniques Cinématographiques. Além de livros sobre o começo do cinema, também escreveu sobre a história da Cinemateca Francesa. A fala de Mannoni tentou puxar a reflexão para um lado mais técnico e histórico, relativizando a revolução digital ao atribuir uma perspectiva histórica ao processo. Ele falou – ainda que de forma tímida – sobre a importância de olharmos para outros momentos de transição tecnológica e agirmos com mais cautela nesse novo momento. Lembrou a transição do nitrato para o acetato, quando muitas matrizes de filmes foram destruídas e destacou o trabalho de Langlois (claro!) na tentativa de combater essa política, inclusive mostrando um manifesto assinado no festival de Veneza de 1966 onde vários diretores, inclusive Glauber Rocha, apoiaram a proteção das matrizes em nitrato. A cautela defendida por Mannoni decorre do entendimento de que o progresso da tecnologia digital no cinema tem resolvido muitos dos problemas de sua adaptação (sobretudo no que toca a qualidade da informação) em várias áreas do cinema (produção, na pós-produção, na distribuição, na exibição e até mesmo na restauração), exceto à da conservação de filmes. A conservação de filmes não foi beneficiada pelo advento do digital, ao contrário, o implemento das novas tecnologias colocou em risco a salvaguarda do cinema produzido digitalmente. Neste sentido, há uma defesa de se manter uma política de impressão dos filmes produzidos em meios digitais em material fotoquímico. Ou seja, a conclusão é a de que hoje a preservação e a salvaguarda das obras produzidas digitalmente deve ser feita em película cinematográfica (!).

Com muita ironia ele terminou sua fala com a seguinte charge publicada em 1968 quando Langlois foi afastado da Cinemateca Francesa.

[Legenda: – Este é o novo computador encarregado de substituir Langlois na direção da Cinemateca!]

Na seqüência, Olivier Bosel, professor de economia da MINES Paris Tech, e autor do livro “Dernier Tango Argentique”, fez uma ode à revolução digital, sem acrescentar muitas informações ou uma reflexão mais substancial. Foi mais do mesmo do que já se diz sobre o advento do digital e seu impacto, sobretudo na difusão e circulação das obras.

Jean-Baptiste Hennion, que é professor da Universidade Paris 8 e sócio de uma empresa que presta serviços de instalação e projeção de cinema digital, fez uma fala bastante informativa ao trazer muitos números sobre a conversão das salas francesas para o sistema de projeção digital. Ele chamou a atenção para a velocidade que a conversão atingiu no último ano: se até 2010 tinham sido adaptadas 1000 salas, entre 2010 e outubro de 2011 foram mais 2312. Hoje 893 cinemas estão equipados exclusivamente com projeção 35mm. A MK2, umas das grandes redes de exibição, por exemplo, já migrou todas as suas salas para projeção digital. Esta migração está baseada num forte apoio estatal e no estabelecimento de um padrão básico para projeção: o 2K.

Para Hennion, muito mais importante do que pensar a questão da qualidade de resolução dos projetores digitais (2K, 4k etc.) em relação aos 35mm é ter em consideração que um elemento continuará sendo crucial na projeção – seja ela analógica ou digital –: a luz. A luminosidade dos projetores continuará a ser um elemento fundamental na qualidade das projeções.

A intervenção de Alain Besse, da Commission Supérieure Technique (CST) destacou a importância da normatização de processos e o estabelecimento de parâmetros de qualidade na implementação das tecnologias digitais, sobretudo no tocante à projeção e conversão de salas. De certa forma a fala de Besse complementou a participação de Jean-Bapstite Hennion mostrando que este movimento de conversão das salas de cinema vem sendo acompanhado por uma comissão técnica que recomenda parâmetros de qualidade a serem seguidos. É importante frisar que a CST só pode fazer recomendações e não regular o setor. Ao fazer um histórico da atuação da CST para o cinema digital, ele destaca, por exemplo, que a comissão só passou a utilizar o termo Cinema Digital quando os primeiros projetores em 2K começaram a chegar ao mercado, antes eles falavam em projeção digital. O parâmetro de qualidade utilizado pela CST para suas análises é a projeção em 35mm, ou seja, para eles a projeção digital deveria garantir, minimamente, a qualidade de uma projeção em 35mm.

A manhã do dia 13 terminou com a participação de Bruno Racine, presidente da Biblioteca Nacional da França – BNF. A contribuição de Racine para a discussão foi pequena. Abordou mais o trabalho desenvolvido pela BNF, os desafios na digitalização do acervo, na manutenção do acesso e na questão dos limites para obras sob proteção legal, e na preservação das informações digitais. A novidade ficou por conta do trabalho que eles vêm desenvolvendo para salvaguarda da internet. A BNF participa de um projeto amplo que busca desenvolver mecanismos para preservação da memória da Internet.

Após uma manhã pouco animada, esperávamos uma tarde com intervenções mais ricas em novidades e/ou proposições.

A primeira apresentação ficou por conta de Milt Shefter, um dos responsáveis pela publicação Dilema Digital. Além de fazer um histórico da criação e atividades do Conselho de Ciência e Tecnologia da Academia, e apresentar as bases e preocupações que geraram o Dilema Digital, ele apenas falou da preocupação de se ampliar as ações de preservação digital para as produções independentes. Para quem já conhecia o trabalho (que por incrível que pareça só foi traduzido para o português e para o japonês), a fala de Shefter foi uma das mais desapontadoras e burocráticas do dia. Basicamente ele reforçou a idéia de que o dilema digital ainda está colocado e que as saídas para ele não estão definidas. Embora o que assistimos no colóquio indique que por mais indefinido que o futuro esteja, vultuosas quantias estão sendo aplicadas na na digitalização de acervos.

Milt Shefter, ao centro, e o dilema digital

Em seguida veio a participação de Christian Lurin diretor do laboratório Éclair. O título de sua apresentação foi “From film lab to film care”. Lurin apontou a profunda transformação pela qual vem passando o laboratório e aproveitou para fazer uma boa propaganda do trabalho desenvolvido por eles. A Éclair vem alterando sua atuação e seu modelo de negócios, dando cada vez mais ênfase às ações de conservação e restauração (tanto fotoquímica como digital), digitalização de acervos e mesmo realização de inventários de conteúdos. Sem sombra de dúvida, o mundo dos laboratórios são os que mais estão sofrendo nesta transição, estão precisando reinventar suas estruturas e investir muito para continuar atuando. Como compensar perdas enormes com as mudanças no negócio?

O último palestrante do dia foi o representante da Kodak, Clive Ogden. Preparou uma intervenção para reforçar o discurso do suporte fílmico como o único capaz de preservar o patrimônio audiovisual. A película seria o “Gold Standard” na preservação cinematográfica. Outro que aproveitou para fazer uma propaganda da Kodak e de sua preocupação com o futuro da película. Na imagem abaixo, uma ilustração de como seria a cadeia de vida de um filme, analógico ou digital, da filmagem à exibição, passando pela produção de matrizes de conservação.

Para os arquivos, esse esquema apesar de incluir a conservação não responde a todas as suas demandas e responsabilidades. Mesmo que o “retorno” à película seja a melhor prática para conservar as obras e seus conteúdos, todos os outros elementos envolvidos na produção de um filme (dos equipamentos de filmagem aos dispositivos de exibição) devem continuar sob a atenção das cinematecas.

Ao final do primeiro dia, foi exibida uma versão restaurada em 4K de Taxi Driver de Martin Scorsese (1976). Porém, a projeção foi feita em 2K que é a resolução do projetor da Cinemateca Francesa.

O início do segundo dia ficou por conta de Kevin Brownlow. Ele fez um depoimento sobre a história da restauração de Napoleón de Abel Gance. Um relato bonito, bem humorado e apaixonado, mas que nada contribuiu para discussão sobre o digital. Como me informou o Mateus Nagime, o texto que Brownlow apresentou foi quase idêntico ao que ele mostrou em Pordenone durante a Giornate del Cinema Muto. A diferença teria ficado na aliviada que ele deu nas críticas ao Henri Langois. Um pouco sobre o trabalho e a trajetória de Brownlow pode ser lido na entrevista realizada pelo BFI [Link citado por Marco Dreer em sua dissertação de mestrado]

A intervenção de Martin Koerber, chefe de conservação da Deutsche Kinemathek e um dos responsáveis pela restauração de Metrópolis, entre diversos outros filmes, foi a primeira a tratar de forma mais direta e séria a questão da transição para o digital. Ele começou chamando atenção para o fato de que esta transição tecnológica é a primeira na qual os arquivistas audiovisuais, as cinematecas e os museus de cinema podem buscar intervir no momento mesmo em que ela está ocorrendo. Ao contrário das transições anteriores, neste momento os arquivos de filmes estariam organizados e estruturados o suficiente para estabelecer uma reflexão e uma ação no sentido de tentar influenciar a direção desse processo. Tal possibilidade por outro lado implicaria em um debate profundo sobre ética e responsabilidade dos arquivistas e das instituições em todas as etapas de seu trabalho.

Para Koerber não há dúvida que todas as etapas da vida de um filme serão feitas através de ferramentas digitais, com a exceção da conservação que continuará conjugando a conservação fotoquímica. Neste sentido, Koerber provocou a platéia a abandonar os termos “restauração digital”, “projeção digital” ou “cinema digital”. Para ele ou há restauração ou não há restauração de um filme. Ou há projeção ou não há projeção. Ou há cinema ou não há cinema. Bastante rigoroso em sua fala, ele defende o uso mais cuidadoso dos termos.

François Ede, diretor de fotografia e responsável pela restauração de “Jour de fête”, “Play Time” e “Lola Montès” escolheu o termo “síndrome digital” para falar desse novo momento e seu impacto na conservação. O discurso forte e insistente na fragilidade do digital para conservação de filmes apenas reforçou o tom geral, indo um pouco além ao falar dos custos de preservação do digital em comparação ao fotoquímico. Neste ponto ele foi auxiliado pela participação de Ronald Boullet, supervisor de restauração do grupo Éclair, que apresentou algumas tabelas comparativas:


Na primeira tabela estão os custos médios de laboratório para um filme colorido de 90 minutos (valores em euro). A segunda apresenta de forma comparativa os custos envolvidos na conservação de longa duração para filmes em suporte de película e em suportes digitais. Mesmo tendo um custo inicial mais elevado, a película é de longe um suporte mais barato na preservação.

A mesa redonda do final da manhã foi uma forma de celebrar as parcerias que estão sendo feitas nesse novo momento, uma volta ao aspecto político do primeiro dia. Um novo pacto entre os atores do mercado e do setor público, convergência de interesses (sobretudo financeiros), num momento em que o governo francês está disposto a financiar a digitalização de acervos públicos e privados. A participação de Nicolas Seydoux, ex-presidente da Gaumont, marcou esse aspecto. Discutiu-se também um pouco do papel da Cinemateca Francesa, não apenas na formação de platéias, mas na mediação e transmissão de conhecimentos. A participação de Gian Luca Farinelli da Cineteca de Bologna e responsável pela criação do Laboratório L’immagine Ritrovatta, foi interessante, pois trouxe uma dimensão um pouco diferente ao falar da realidade italiana. Para ele, a situação da França hoje na área digital é uma verdadeira “ficção científica” se comparada à situação italiana.

A participação de Mari Sol Pérez Guevara, chefe da Comissão de Mídia e Audiovisual da União Européia, apresentou a política que vem sendo construída com os países membros para acompanhar e coordenar essa transição para o digital. Ela fez um histórico da comissão e mencionou muitos relatórios que estariam sendo elaborados de forma conjunta entre os países membros (veja aqui o sitio com relatórios e recomendações do comitê). Porém, sua fala acabou revelando um enorme descompasso entre a política interna francesa e as dos demais estados membros. Ao final, foi atacada de forma veemente por representantes de entidades francesas que questionaram a legitimidade da Comissão e a qualidade do trabalho lá desenvolvido. É um pouco difícil compreender exatamente as razões da briga, pois devem estar relacionadas mesmo com a própria estrutura da União Européia que, como podemos ver com o caso da Grécia, vem enfrentando grandes crises.

De qualquer forma, independente de quem tenha razão neste caso, existe sim uma posição de isolamento da França em relação a outras iniciativas européias, que parece ser sintomática. Na composição mesma do colóquio chamou atenção a ausência de representantes de outras cinematecas importantes (ex.: Espanha, Portugal) e, sobretudo, dos holandeses que notadamente têm um protagonismo nas ações e na reflexão sobre o digital. Basta lembrar aqui o trabalho de Giovanna Fossati “From Grain to Pixel: The Archival Life of Film in Transition” (Fossati é professora do Mestrado em Film Preservation and presentation na Universidade de Amsterdã (do qual ela participou da criação) e Curadora do Museu do cinema holandês (EYE – Film Institute Netherlands. www.eyefilme.nl) e o projeto Images for the future, que está digitalizando todo o patrimônio audiovisual da Holanda.

Mathieu Gallet diretor geral do Institute National de l’audivisuel - INA fez uma apresentação semelhante a do presidente da BNF. Abordou o trabalho desenvolvido pela instituição e despejou uma quantidade de números e estatísticas impressionantes no tocante à armazenagem, digitalização e controle de acervos. Sua presença marcou muito mais uma opção política do que técnica.

Jean-Pierre Beauviala, inventor e criador da Aaton fez uma bela apresentação buscando nos autochromes dos irmãos Lumière a inspiração para uma reflexão sobre a preservação analógica e digital do cinema. Foi uma apresentação bastante técnica e confesso que não consegui acompanhar todo o debate. Mas o público adorou ver a proposta de separação YMC do inter-negativo num mesmo rolo de filme PB. (Ver foto abaixo).

Porém ficou para o final do colóquio aquela que em minha opinião foi de longe a melhor e mais importante reflexão apresentada durante todo o evento. Alexandre Howart, diretor do Österreichisches Filmmuseum-Austrian Film Museum de Viena fez uma intervenção tranqüila e precisa problematizando o processo da chamada revolução digital e a maneira como arquivos e governos têm se posicionado sobre o tema.

O questionamento que Howart faz é simples, mas me parece exato. A quais interesses está respondendo a revolução digital? Não se trata de negar a existência desse processo, de fechar os olhos para as mudanças que estão operando, mas olhá-lo com atenção e enxergar os interesses e disputas que o constituem.

Para Howart, mais do que em outros momentos da história do cinema a questão econômica vem comandando essa transição para o digital. A rapidez e a força desse processo vêm sendo definidas por interesses de grupos específicos que estão mais preocupados com o lado mercantil desse processo do que com o lado cultural. A questão levantada por Howart poderia ser colocada da seguinte forma: Se existe o consenso de que o digital não garante a conservação das informações por longo prazo e que exige constantes investimentos em seu armazenamento, manutenção e migração, porque governos e arquivos audiovisuais estão investindo milhões num processo sem garantias? [Certamente ele não está defendendo uma não atenção para a produção cinematográfica que já nasce digital, essa produção precisa ser preservada e, como já nasce na nova lógica, demanda muitos recursos e cuidados. Ele questiona mesmo é o investimento maciço na digitalização do patrimônio cinematográfico num momento em que está claro que os investimentos necessários são enormes e que as garantias não existem. Isso se torna mais duro quando se pensa num momento de crise como o que vivemos agora: será possível manter uma política de investimentos constantes na migração e na manutenção da acessibilidade desse material? Talvez a França e a Alemanha sejam capazes, mas e os demais países? A crise atingiu com força Portugal, Itália, Grécia.... E o Brasil?]

No mundo todo, a ordem do dia é a “acessibilidade” dos conteúdos e dos acervos, sobretudo audiovisuais. Esta acessibilidade permitida pela digitalização intensa de conteúdos seria sinônimo de democratização, pois milhares de pessoas em todo o mundo poderiam passar a ter contato com obras que antes estariam trancadas, escondidas ou perdidas nos acervos das instituições ou restritas, no caso do cinema, às salas de projeção. A pergunta que Howart coloca é se esta política do acesso está necessariamente respondendo a uma lógica de democratização da informação e da cultura, quando não se tem garantias a médio e longo prazo de se continuar tendo acesso a elas. É uma boa política pública investir milhões num processo que só dá garantias reais aos interesses dos grupos privados que detêm os mecanismos de produção desse mesmo processo? Sob o discurso do acesso talvez estejamos construindo um sistema que é insustentável a médio prazo e que na prática garante a transferência a longo prazo de recursos (normalmente públicos) para aquelas empresas e grupos econômicos que têm o poder de decidir os novos produtos e os novos padrões tecnológicos. Neste sentido, a discussão proposta por Howart é basicamente política, sobre democracia e responsabilidade pública; sobre a responsabilidade dos museus e cinematecas em suas práticas. Para ele, estas instituições deveriam lutar para estabelecer um outro tempo neste processo.

A última mesa redonda acabou girando sobre o tema da cinefilia e formação de platéias. A importância ou não das salas de cinema, o uso da internet na difusão e acesso de filmes. A discussão não conseguiu decolar e ficou muito marcada por um certo saudosismo sem consistência em relação à projeção analógica, o 35mm etc.

Para encerrar o colóquio foi exibido “The man how knew too much” de Alfred Hitchcock em uma cópia original do primeiro lançamento, já um pouco detonada, mas com sistema de som original. A projeção foi precedida de uma palestra de Jean-Pierre Versheure, professor do Institut National Supérieur des Arts Du Spetacle - INSAS, e colaborador do Conservatório Técnico da Cinemateca Francesa, que tratou justamente do sistema sonoro empregado por Hitchcock neste filme.

Espero que esse breve texto tenha dado uma dimensão do encontro e trazido questões interessantes sobre o tema. De uma forma geral fiquei um pouco desapontado com as discussões, talvez tivesse uma expectativa que algo de mais importante fosse levantado e atualizado em relação ao digital, sobretudo na conservação. O aspecto de celebração pública de uma política definida nos bastidores deu um tom um pouco estranho para o colóquio que se apresentava como uma reflexão aberta para o futuro das cinematecas. (Veja aqui o balanço oficial do colóquio feito pela Cinemateca Francesa). De toda forma, há um elemento interessante de se observar que é o lugar central que ocupa o conceito de patrimônio na França. É um conceito realmente enraizado, que aparece de maneira fácil e corrente em todos os discursos. A importância do capital cultural é algo estabelecido. No Brasil, ainda precisamos batalhar muito por esse reconhecimento, precisamos construir esse espaço, sobretudo no que toca ao audiovisual. Fico lembrando do trabalho pedagógico e militante de Paulo Emílio Salles Gomes nos artigos do Suplemento Literário do Estado de São Paulo no final da década de 1950 e início da década de 1960 nos quais tentava consolidar um pensamento sobre a importâncias das cinematecas... Apesar de todos os avanços que ocorreram na área ainda precisamos de muita militância para que uma Cinemateca não seja vista como artigo de luxo ou instituição supérflua no meio cinematográfico.

Foi mesmo a participação de Alexander Howart que me despertou mais questões que começam a me fazer olhar de outra forma para o nosso contexto brasileiro. Uma discussão política que envolve uma profunda reflexão sobre democracia e responsabilidade estatal, sobretudo no que se refere ao acesso e à preservação do patrimônio audiovisual. Talvez o fato de nos encontrarmos um pouco na periferia desse tsunami digital nos permita uma reflexão um pouco mais detida sobre os caminhos que devemos seguir, uma reflexão que é principalmente sobre democracia. Talvez a nossa força nesse contexto seja mesmo o nosso “tempo lento”.

3 comentários:

Anônimo disse...

Quental e Rafael;
Parabéns pela publicação deste ótimo comentário acerca do colóquio. O curioso é que apesar do Quental achar o evento um pouco decepcionante, a narrativa feita tornou tudo muito instigante.
Para provocar: você mesmo, Quental, não estaria sendo saudosista? Discordo de você que no campo da conservação o Brasil esteja tão "lento". O fato de existir uma discussão intensa sobre o assunto entre pesquisadores, professores e estudantes mostra o contrário, bem como algumas ações governamentais - é bem verdade que estas na gestão passada.
Um abraço;
Arthur Autran

J. Quental disse...

Meu caro Arthur,
Fico contente que tenha achado o texto instigante. O colóquio também o foi. Mesmo que eu tenha saído um pouco desapontado, foi muito interessante assistir certas falas e ver um auditório de uns 400 lugares lotado de pessoas para assistir as apresentações (lembrando que evento não foi gratuito. 10 euros entrada normal e 5 tarifa reduzida)

Quando falo nesta “lentidão” brasileira estou me referindo, sobretudo, a incorporação do digital no campo da preservação. Hoje ela se dá basicamente na restauração de filmes e em algumas iniciativas isoladas. Não conheço (talvez por falha minha) um projeto consolidado para conservação das obras já nascidas digitais (modelos de arquivamento, migração, pesquisa sobre softwares etc...) e o principal projeto de digitalização de acervos até onde sei é o Banco de Conteúdos Culturais da Cinemateca Brasileira/CTAv que até hoje não vimos funcionar a contento. Embora não tenha os valores do projeto do BBC, certamente ele está muito longe dos 170 milhões de euros envolvidos num projeto como o “Images for the future”. As discussões promovidas no âmbito da Cultura Digital, que estão em marcha bem lenta neste novo governo, estavam focadas principalmente na acessibilidade e muito pouco na conservação.

Tendo a ver isso com bons olhos, pois acredito que antes do governo decidir aplicar uma grande quantidade de dinheiro em um projeto, é preciso uma reflexão ampla para a construção conjunta de uma política de preservação. As decisões para o digital, quando tomadas, refletirão em enormes investimento de recursos à longo prazo (do contrário vão significar - no melhor dos casos - o desperdício desses investimentos e -no pior -, a perda de parte do patrimônio cinematográfico do país). Neste sentido é preciso envolver as instituições de guarda e a sociedade nesta discussão para decidir quais seriam os critérios e às prioridades de uma política para a área. E isto, nós sabemos, não vem acontecendo.

Agora, concordo com você que hoje temos um forte crescimento nas discussões sobre a conservação audiovisual, tanto na academia, como em festivais e que o tema está saindo (ainda bem!!) dos muros das cinematecas.

Agora, em que sentido você acha que eu estaria sendo saudosista?
Um abraço
Quental

nati disse...

Comentando tardiamente, acho que muitas vezes sofremos exatamente com o medo de sermos saudosistas, abracando saidas que nao sao as melhores, com medo de ficarmos pra tras e sermos tachados de nostalgicos... Eh oreciso um pouco mais de rigor.